Filosofias da afirmação e da negação.

Para que se possa compreender o conceito das palavras fundamentais da argumentação citada nas linhas abaixo (cliácrise e  síncrese), abro a postagem com palavras do próprio autor, para que ele mesmo as explique em seus próprios termos. Compreender as profundas implicações que a singular motivação interior impõe no modo como  tais movimentos se exteriorizam,  não apenas na nossa vida diária, mas em toda nossa existência, na total amplitude que lhe cabe, é ingrediente essencial para que uma visão clara possa algum dia nascer.

Sem isso só o que sobra é impressão, coquetismo e vaidade.

Allan R. Regis.

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A crise revela dois aspectos antagônicos, mas escalares: a direção de afastamento, o diastema, que é a cliácrise; e o de aproximação, a síncrise.  Naquela obra, demonstramos que as ideias diacríticas tendem a separar e a afastar o homem da solução dos seus problemas, como as ideias sincríticas apenas oferecem falsas soluções.   A crise é inevitável, mas pode ser agravada.

Mário Ferreira dos Santos: Filosofias da afirmação e da negação.

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Quando intitulei este livro de “As Filosofias da Afirmação e da Negação”, quis colocar-me plenamente no meio do que assoberba a consciência moderna. E também quis tomar uma atitude.

A diácrise em que vivemos, a crise instaurada, que cria abismos entre os elementos constituintes, não pode ser solucionada por síncrises, como as que tentamos realizar. A coesão pode ser adquirida pela força, mas será caduca. Só um poder une os opostos: é a transcendência. Querer forçar a unidade mecânica da nossa sociedade através do aumento do poder do Estado, da polícia e do exército e do organismo burocrático ou partidário, é uma forma brutal de coesão, e fadada ao malogro.  Porque só a síntese transcendental consegue a coesão intrínseca. Parece haver uma contradição aqui, mas esta é meramente aparente. 

Quando as partes de um todo estão unidas pela coesão dada por uma força exterior, essa coesão é apenas transeunte e falha. Não nos unimos por estarmos mais próximos uns aos outros, por convivermos ao lado uns dos outros, por nossos corpos se aproximarem mais. O que une os homens não é o físico, mas o espiritual. O homem não é apenas um animal, mas um animal que tem racionalidade, entendimento, e uma inteligência especulativa o também apofântica, porque também capta o que não se exterioriza, o que se oculta. A lei não nos une porque decreta a nossa união. O Estado moderno é uma abstração dentro da sociedade, e não é um organismo é apenas uma máquina. Falta-lhe a vida. Se fosse a sociedade organizada, seria ela mesma. Só então o Estado seria a sociedade. Por mais que alguns queiram, a polícia não é um substituto de Deus, nem a lei decretada pelos poderes constituídos a lei que brota dos corações e da inteligência. Tudo isso é uma mentira que custará muito caro aos homens, como já vem custando. O Estado moderno conseguiu  realizar mais uma brutalidade, e nada mais. É preciso que surja espontaneamente o que une, como surge o amor de mãe a filho, a amizade entre os indivíduos humanos. Não se decretam simpatias. Eis o que queremos chamar de imanência. Enquanto o humano não unir os humanos, estes não transcenderão a si mesmos. A transcendência sintética de que falo é aquela que tem raízes na imanência humana. E quem pode negar que o homem moderno trai a si mesmo? Não se afasta cada vez mais de si mesmo? Não nega cada vez mais a si mesmo? Não busca fugir de si mesmo em busca da sua negação?

Tudo na sociedade moderna separa. Não são apenas as coletividades que se separam, as classes que se separam, os grupos que se separam; são os indivíduos que se separam, e estes dentro de si mesmos. Quantos são estranhos a si mesmos. Quantos permanecem atônitos quando se debruçam no exame de sua própria personalidade! Sim, cada vez mais nos desconhecemos, quando pensamos que nos aproximamos de nós mesmos. Quão poucos resistem à contemplação de sua própria pessoa!

E quantos conflitos na impossibilidade de admitirem a si mesmos e de admitirem os outros!

E de onde nasce essa ânsia de separação? O homem é um animal inteligente. É mister buscar na sua inteligência um dos fatores de suas misérias intelectuais. E a miséria intelectual de nossa época chama-se niilismo. O homem é hoje um buscador do nada. Um negador de si mesmo, e de tudo. Mas essa negação o angustia. Angustiasse de não ser.   E nela não poderá perdurar.

Mário Ferreira dos Santos: Filosofias da afirmação e da negação.